terça-feira, 27 de março de 2012

PERSCRUTANDO


Marco Joel Santos, "Amanhecer no Campo"

O horizonte. Perscrutando o horizonte. Mais que uma dimensão, mais que uma ocasião. O horizonte de horizontal pouco leva da palavra. O horizonte é mais que horizontal, é mais que uma planura ou uma paisagem. O horizonte é algo comum a todos, algo omnipresente em cada dia que acordamos. Pena não acordarmos todos os dias.
Da estafa do trabalho, olhamos o horizonte, para ver se chove amanhã. Mas não o perscrutamos. Da vertigem da festa saímos, de olhos enfumarados e gostos estranhos na boca. E o Sol nasce no horizonte, e já é dia, e vemos, mas não perscrutamos. Da cama saímos, e abrimos as janelas para deixar entrar a luz, e não vemos que a luz não precisa de entrar, porque ela existe quer a queiramos deixar entrar ou deixar lá fora. Depende de nós deixá-la entrar, mas ela existe, emana do horizonte que insistimos em não perscrutar.
O horizonte de horizontal leva pouco da palavra. O horizonte não é horizontal, não é plano, é íngreme, é vertical. E estando na nossa frente, não o perscrutamos. O horizonte é aquilo que não queremos perscrutar. Mas da vida levamos o dom da morte e nada ou pouco mais. O melhor não está para vir, está no ir, está no que já foi. Nada do que passou retorna e o horizonte mete-nos medo. Medo da verticalidade, medo da inclinação.
Medo de perscrutar o horizonte. Nunca o perscrutamos porque sabemos que ele nos fala, e nos diz aquilo que não queremos ouvir. Ouvir o horizonte. É um exercício sádico. Mas é uma catarse, e só ouvimos o horizonte quando, por fim, serenamos. E quando por fim encontramos aquilo que somos e fomos, porque não sabemos se seremos, é quando perscrutamos o horizonte. E não é um vácuo, é mais que isso. É um vórtice, é uma vertigem de possibilidades, é uma passagem para outra dimensão, uma viagem. O que resta dela.
Engraçado. Cada vez que nos aproximamos de uma montanha, maior e mais vertical ela fica. E depois trasnpomo-la, e a montanha dá lugar ao vale, a novos horizontes. Mas o nosso horizonte é sempre distante. Nunca se revela, nunca muda de tamanho, esperamos sempre transpo-lo, alcançar o seu cume e descansar no vale. Mas se descansássemos no vale, deixaríamos o nosso horizonte. Não é possível, esse negro e lúgubre horizonte, para o qual caminhamos avidamente, sem escolha, é imutável até ao fim dos tempos.
Nunca o alcançaremos. Mas continuamos a caminhar e a percorrer o caminho para o horizonte. Não chegaremos lá nunca, e quando chegarmos não saberemos que o fizemos. Mas viajamos para ele, viajamos por ele. E sem saber, lá chegaremos. Ou se calhar nunca o alcançaremos. Não interessa, de qualquer forma. Interessa a viagem e não o destino. Interessa caminhar, não interessa alcançar. Interessa tentar, não interessa conseguir. Interessa correr para a meta, não interessa cortá-la. Porque, de tanto conseguir, qualquer dia, conseguimos mesmo. E o horizonte é igual para todos. O melhor não está para vir. O melhor é o que já foi e o que vai vindo, não aquilo que virá. Porque o que virá é o que desejamos na cegueira do horizonte. O que vai vindo é a luz que entra quando abrimos a janela.

terça-feira, 13 de março de 2012

PARADOXOS


Já por diversas vezes tenho chamado a atenção de algumas pessoas no sentido de não julgarem as coisas como querem que elas julguem. Avaliem as coisas por si mesmas, não por aquilo que julgam saber pela comunicação social manietada que temos hoje mas antes por fontes o mais possível independentes e, se possível, evidentemente, pela experiência pessoal. Isto a propósito de tudo o que se diz e fala do Médio Oriente e dos seus povos, nomeadamente o árabe e o judeu.
No passado sábado, cumpriu-se um ano após o terrível tsunami no Japão, que tão tristes consequências já teve e sabe-se lá que mais pode vir a provocar. Na altura, foi de forma unânime que se louvou a resposta dada ao cataclismo, tanto por parte do governo nipónico como pelo próprio povo japonês. Alertei um caríssimo amigo cibernético que não embarcasse em euforias nem em exemplos fortuitos. Nunca estive no Japão, é certo, nem sequer é uma cultura que me interesse de qualquer forma, mas o que pensava que sabia sobre os japoneses aconselhavam-me cautela no comentário aos acontecimentos.
Foi igualmente no sábado passado que foi entrevistado, em directo e na SIC Notícias, um determinado português habitante de Tóquio. Não me peçam nomes, não o apanhei e não era uma estrela qualquer. É simplesmente um emigrante português no Japão, que já há um ano tinha dado algumas palavras à imprensa portuguesa sobre a situação que se vivia no país nas horas seguintes ao sucedido. Segui com algum interesse as suas palavras, agora à distância de um ano da catástrofe, e sobre, inicialmente, as cerimónias em memória da mesma.
Começou por dizer que era importante a presença do Imperador, porque, apesar de gostar do Japão e de lá viver, sentindo-se em casa na sua capital, há diversos “japões” e não um Japão, e a cola que mantém unidas as suas várias nações é a figura do Imperador. De seguida, colocou em causa a seriedade com que o problema da central nuclear de Fukushima foi tratado pelo governo, até porque, há um ano, não compreendeu sequer a pergunta que lhe foi feita sobre o assunto, porque foi uma coisa que se soube no Japão pela imprensa estrangeira apenas. Afirma que ninguém em Tóquio usa água de rede a não ser para lavar a roupa e mesmo assim se pensa duas vezes antes de a vestir.
Colocada que foi a questão da reconstrução, e de como a eficiência japonesa nesse aspecto parece ser exemplar, o nosso compatriota afirma que… não há reconstrução! Há dois ou três sítios que limparam para mostrar nas câmaras, mas a verdade é que nenhuma outra província japonesa aceita o lixo do tsunami e até incinerar esse lixo. Rematou com a lembrança da assombração ou fantasma pendente sobre a cabeça de cada japonês, que facilmente não esquecem as atrocidades cometidas no passado nem os milhões de mortos causados. Mas ainda mais interessante, e no que concerne àquilo que na altura do acidente me referi, foi a confidência da absoluta falta de solidariedade que grassa no Japão. O país não se mobiliza por razões humanitárias, desde que as pessoas não sintam na pele a desgraça. Uma marca bem asiática. O que contrasta claramente com a capacidade para obedecer e não se manifestar.
Há dois paradoxos que não posso deixar de realçar: o primeiro, é a publicidade enganosa de um país valente e solidário, que rapidamente encontrou saídas da destruição verificada. Mentira – pelos vistos, nada foi reconstruído, as pessoas afectadas continuam a morar em barracões do exército e não há donativos de outras partes do país para ajudar aquela região em particular. Não acreditem em tudo o que ouvem e vêem. A maior parte da informação é simplesmente falsa. O segundo, o contraste entre japoneses e portugueses. A catástrofe madeirense, apesar de bem menor em dimensão, parece ter recolhido muito mais solidariedade por cá que o tsunami por lá…

segunda-feira, 5 de março de 2012

DOS ORÁCULOS

Ilustração de Marco Joel Santos


Não vai há muito tempo, mais concretamente uns dias, escrevi, num contexto de guerra no Médio Oriente, da soberba dos homens que pretensamente comandam os destinos daqueles povos. Escrevi soberba, mas podia escrever vaidade, presunção, arrogância ou mesmo pretensionismo. Esta última é daquelas palavras que calham sempre bem, é um termo politicamente correcto que no fundo apenas quer dizer o que as outras dizem de forma mais clara. Por defeito, o Homem é arrogante. O Homem é limitado, mas não conhece as suas limitações. A História está cheia de exemplos de arrogância vergada ao seu destino que, normalmente e com raras excepções, é a derrota.
Podia escrever sobre Hitler, Napoleão ou Nixon. Exemplos de arrogância vergada à vergonha da derrota. Mas prefiro a sabedoria da Antiguidade, até porque é na Antiguidade Clássica que encontramos os mais pungentes mitos e histórias que serviram de base ou exemplo para muita da nossa cultura.
No século VI a.C., a Lídia era uma potência regional no Mediterrâneo Oriental. Era liderada por um rei extremamente rico, de nome Creso. Dizia-se que a sua riqueza provinha da exploração de ouro no rio Pactolo, um afluente do Hermo, onde, rezava a mitologia grega, se tinha banhado o célebre rei Midas, que transformava em ouro tudo o que tocava. Desde Sardes, a sua capital, Creso dominava praticamente todo o Egeu e parte da Anatólia, agora que a influência Hitita cada vez menos era notória, desgastado que estava o Império de Hattousa por constantes guerras contra o Egipto e a Pérsia.
Tão poderoso e rico era Creso que não resistiu a erigir aquele que foi o monumento da sua vida e uma das Sete Maravilhas, o fabuloso Templo de Artémis, na exuberante cidade de Éfeso, actual Turquia, que havia de subsistir até ao séc. III da nossa era, quando foi definitivamente destruído na invasão bárbara pelas hordas dos Godos. Creso era rico e poderoso, mas havia uma ameaça pendente sobre os seus domínios. A ameaça encarnava então na pessoa do Imperador Ciro II, da Pérsia, que havia já ocupado todo o planalto mesopotâmico e grande parte da Anatólia com os seus vastos e inovadores exércitos.
Creso, sendo ele próprio um rei temente às instâncias superiores, não descartou uma consulta aos deuses antes de decidir a sua linha de acção. Consultou então o deus Apolo, no seu oráculo, o famoso Oráculo de Delfos, na margem norte do Golfo do Peloponeso. O Oráculo era conhecido pela certeza das suas previsões mas também pela ambiguidade com que as transmitia. Por vezes, nem todos compreendiam o que era dito e as interpretações eram geralmente aclaradas apenas depois de se confirmarem as previsões. A pitonisa falou e preconizou que se Creso fosse ao encontro de Ciro, para além do rio Hális, por certo destruiria um grande Império.
Creso sublevou a Babilónia e captou o apoio egípcio para a decisiva batalha de Timbra, às margens do Hális. Era tão grande o seu poder que conseguiu até aliar a si a mais prestigiada cidade guerreira da Grécia, Esparta. A coligação lídia foi facilmente vencida pelos persas, que perseguiram Creso até Sardes, ocuparam a capital e o fizeram prisioneiro. Concederam-lhe a graça da sobrevivência na faustosa corte persa, mas anexaram a Lídia ao seu Império.
A arrogância de Creso é tão grande como a sua ingenuidade. Se por um lado pensou que destruiria um extenso império como o persa numa única batalha, não pensou que o império destruído, que o Oráculo de Delfos tinha previsto, pudesse ser o seu. E esse sim, foi destruído numa única batalha.
Esta pequena história, que considero deliciosa, lembra o quão poderoso pode ser o consumo de alucinogénos, pois as pitonisas do Oráculo eram a isso sujeitas em quantidades massivas. Mas, para além disso, lembra igualmente o quão pode o Homem arrogante ser insensato.
Hoje, o Oráculo é outro, e parece-me ser igualmente certeiro. A propósito da crise que assola toda a Europa e, em rigor, todo o mundo, muito se tem falado de crescimento. Que temos de crescer, que temos de criar riqueza, que temos de prosperar. Por outo lado, a população humana na Terra não para de aumentar. Ainda aqui há uns dias foi anunciado o bebé sete mil milhões e parece que entretanto já acrescentamos 87 milhões de seres humanos à população global. A minha questão é simples. Crua, talvez cruel, talvez até insensível, mas simples e objectiva: crescer para onde? Para onde quer ir o Homem? Crescer é um objectivo em si, a população cresce, a economia cresce, tantas vezes de forma artificial como ultimamente tem vindo a terreiro. Mas há uma coisa que não cresce. A Terra. O Oráculo é aquele incómodo sentimento de fazermos e dizermos aquilo que sabemos não estar correcto, e que é a tendência judaico-cristã de ir e povoar o Mundo. Só que no tempo de Abraão, o mundo era quase isento de seres humanos. Hoje somos sete mil milhões. Sete mil milhões para alimentar, para vestir, para cuidar. E bem sabemos que desses todos, apenas uma pequena parte tem esses cuidados providenciados.
Se o oráculo é a própria consciência humana que sabe que se atingiu o limite em termos de população humana, e que não há desenvolvimento sustentável que nos valha daqui a 20 anos, quando formos dez mil milhões, o Império, tal como Creso fez, é muitas vezes confundido. Parece que a soberba humana novamente vem ao de cima. O Império é a raça humana, o Homem, dizem. É uma mentira descarada e óbvia. O Homem é Creso, arrogante, poderoso e que se julga invencível. Mas não é o Império. O Império é a Terra. Mas não o Império destruído, como a Lídia, mas sim o Império vencedor, a Pérsia. Porque a Terra está-se literalmente cagando para o Homem. Quando este tiver de desaparecer, é um adeus, oh vai-te embora e está pronto. A Terra vai sobreviver. Nós, por este caminho, por esta espiral louca de crescimento, por esta arrogância imensa de nos confundirmos com o local que habitamos, por o assoberbar de descendência, por o explorar até à medula, nós, o Homem, não. O Homem não sobreviverá. Regressará a sua massa morta ao seio da Terra, que dela gerará nova vida, esquecendo rapidamente o capítulo fugaz da nossa existência enquanto espécie dominante. É que o planeta é fabuloso: recicla tudo e encontra sempre forma de sobreviver em quaisquer circunstâncias. O Homem não. Morrerá. Como a Lídia de Creso.

domingo, 4 de março de 2012

PRIMAVERA DE ANGÚSTIAS



No dia-a-dia, na azáfama diária, habituamo-nos a queixar sobre as coisas mais triviais.  É bem verdade que ultimamente temos tido coisas menos triviais que o costume, que dantes não iam muito além da bola e das novelas com um ou outro problema mais bicudo para resolver. Hoje, os problemas são maiores, e enquanto assistimos a uma cavalgada para o abismo, agarramo-nos ao passado e ao conforto da fé para negar a evidência.
No entanto, Portugal é um jardim à beira mar plantado. Mediterrânico a sul, mais temperado a norte, às vezes seco, outras vezes nem por isso, com zonas de deserto e outras desertificadas. É tudo uma questão de manter a fé e a crista levantada. Mas um país onde, cada vez menos, se pode viver. Cada vez menos, mas ainda.
Aqui há dois anos, tive o prazer de voltar ao Médio Oriente. Tenho esse prazer quase todos os anos, mas nessa altura visitamos a Jordânia. Para além das óbvias visitas a Petra, ao Wadi Rum, ao Monte Nebo e Mar Morto, a Jordânia oferece muitos motivos de interesse. Amman é uma cidade bonita, totalmente branca, antiga Filadélfia grega. Tivemos a oportunidade, nas várias noites de permanência na capital, de passear pelas ruas de uma cidade vibrante, cheia de vida, simpática num estilo despreocupado e nada interessado naquele casal de estrangeiros que ali vai.
Dizia eu que há mais motivos de interesse. Desde as imediações da fronteira com o Iraque até Jerash, a maior cidade greco-romana que alguma vez vi na minha vida, em excelente estado de conservação, e toda a zona envolvente, incluindo os castelos cruzados e islâmicos, frente a frente. Trata-se de uma região aprazível, de sombras refrescantes, às margens do Jordão. E onde nos foi servido o mais apetitoso e abundante repasto, ao lado do forno de pão ázimo sempre a sair quente e à sombra das parreiras.
Pode dizer-se que é um risco um casal se aventurar sozinho num país do Médio Oriente, na companhia de dois jordanos (um guia e um motorista), mas a verdade é que o risco é mínimo e de outra forma teríamos de andar de autocarro e não numa confortável berlina com ar condicionado só para nós… Belas sestas. Contudo, apenas a uns 20-30 kms de Jerash (Gerassa em latim – cidade dos velhos – uma história que poderei contar noutra altura), ficam as fronteiras de Israel, Líbano e Síria, e, logo ali, a cidade de Daraa, uma das primeiras que se sublevou ao regime de Assad, na Síria.
Se iria novamente a Jerash, hoje mesmo? Possivelmente não, porque está muito frio por lá – nevou este fim-de-semana – mas apenas por isso. Iria sim, e provavelmente faria as malas num ápice. A guerra civil que se instalou na Síria não merece a nossa indiferença, e fugirmos da realidade não nos leva ao seu conhecimento. Toda a chamada Primavera Árabe pode vir a condicionar as minhas viagens, para os destinos que mais gosto, e que aprendi a amar quase como se se tratasse do meu país. Talvez tenha a ver com a consciência que tenho que foi naquela região que toda a nossa cultura nasceu.
Tenho esperado para ver no que dá esta revolução árabe. Desde as escaramuças na Tunísia e Egipto, às guerras da Síria e da Líbia, passando pela intervenção armada da Arábia Saudita no vizinho Bahrein para prevenir o alastramento aos países do Golfo, tenho esperado. Não teci comentários antes porque ainda não percebi quem e como vai mandar na Tunísia, na Líbia, no próprio Cairo, a luz cultural de todo o mundo árabe. Não sei se quem vai mandar vai ser a democracia ou um bando de milícias armadas em senhores da guerra. Não sei ainda se substituímos ditadores facínoras por regimes democráticos ou por regimes islâmicos.
Mas o que se passa na Síria, e, em boa medida, o que se passou na Líbia, passa os limites de uma espera silenciosa – não comprometida, mas de facto prudente. E deixa-me estupefacto a soberba humana de meia dúzia de sujeitos que aceitam o fardo de serem enviados por uma qualquer entidade superior, religiosa ou laica, para servirem de salvadores das suas pátrias. Assad cabe nesta descrição de um mentecapto que não se apercebe da sua própria mortalidade, da sua impotência para evitar que um dia passe à História como o filho sanguinário de um ditador. Porque Assad nem sequer é um ditador. É apenas o filho de um. E mais cruel que o pai.
Se Kadhafi já era um facínora, se Ben Ali era um corrupto que se aproveitou da obra de Bourghiba, e o mesmo se passou com Mubarak, a verdade é que todas estas personagens não são iguais. Kadhafi era um ditador à moda antiga. Reprimia a oposição, mantinha o país com um nível de vida invejável (para os padrões africanos, note-se) à custa do petróleo – e não, como por aí se diz, matava o povo de fome, até porque a Líbia era destino de emigração de todos os países da África, incluindo o vizinho Egipto – e via-se a si próprio como um semideus que nunca poderia ser derrubado. Ben Ali era apenas um corrupto, que governava a Tunísia de forma indolente e que tolerava uma oposição também ela indolente e pouco expressiva. A crise de 2008 deitou tudo a perder. Mubarak era outro caso ainda. Uma espécie de padrasto do povo, simultaneamente amado e odiado, alvo de anedotas constantes pelas constantes operações plásticas que aos 80 anos o conservavam com uma imagem jovem. Mão de ferro? É certo, mas um ferro que raramente matava e que acabou por abrir o Egipto ao Ocidente e conteve os ímpetos daqueles que querem ver toda a região sob a lei corânica. Enquanto houve pão a bom preço, não houve revolução. Mais uma vez, a crise de 2008 foi determinante.
Todos eles se arvoraram, no entanto, em eternos governantes dos seus países. E aí está a soberba. Além do mais, a soberba. E só pela soberba merecem ser destituídos. Mas não souberam sair, não souberam reconhecer que os seus ciclos chegaram ao fim, não souberam capitalizar aquilo que de bom fizeram pelos seus países para tentar encobrir todo o mal terrível em que igualmente os mergulharam. Já diz a Bíblia que nem só de pão vive o homem. É bem verdade – não há bem mais precioso ao espírito humano que a liberdade. Só ainda não sei se é esse o caso que aqui se prefigura. Sei que não é o caso da Bíblia.
Em todo o caso, Assad é pior que os outros três juntos. E parecia que não fazia mal a uma mosca. Sabe-se – ou aventa-se – das ligações sírias ao Irão e ao Hezbollah, das exportações de petróleo, do turismo que começava a florescer, e relembra-se a pressão a que a Síria é igualmente sujeita, desde muito cedo, pela presença da Nato a escassos kms da fronteira norte, na imensa base de Adana. Em todo o caso, e apesar de tudo isso, a Síria manteve-se um país esguio, muitas vezes neutral perante a opinião internacional, longe dos fundamentalismos iranianos, sauditas, do Hezbollah ou do Hamas – mas com ligações a todos eles. Agora, a verdadeira face do ditador sanguinário é revelada em todo o seu horror. Não pela repressão religiosa, mas sim pela força pura das armas. E ninguém faz nada. Porque ninguém sabe verdadeiramente quem ou o quê pode vir a suceder a Assad. Há, como nas outras revoluções árabes, fundamentalistas à espreita. E ninguém sabe, muito menos o Ocidente, o que vai acontecer depois da deposição certa de Assad. E, importante mesmo, ninguém sabe como vão ficar, no meio de tudo isto, Israel e o Irão. Só se sabe uma coisa – o povo sírio está sofrer e a morrer – e nós sem saber o que fazer.